quarta-feira, 14 de novembro de 2012


A Pianista

Assim que pisou no primeiro degrau da escada rolante ouviu o som inconfundível do metrô que se aproximava da estação. 
Como se estivesse diante de um alarme de incêndio, precipitou-se por entre as pessoas paradas, esbarrando nelas, ao mesmo tempo em que pedia desculpas.
Chegou à plataforma e, de um salto, entrou no vagão com um sentimento de vitória. Mal se segurou nas barras internas, soou o aviso de que as portas se fechariam em breve.
Ainda ofegante a viu sentada, com uma grande bolsa de couro marrom e alça única deitada sobre o colo.
Era de uma beleza aterradora: seus cabelos, muito pretos e lisos, caíam perfeitamente para além de seu pescoço como um temporal sem vento e contrastavam com sua pele clara e seus olhos de um azul trasnslúscido. 
No entanto, mais que o encanto desse ar feérico, chamou-lhe a atenção as claves de sol e fá delicadamente tatuadas nos ombros direito e esquerdo, respectivamente: é pianista, deduziu. 
O trem começava a se movimentar e seus pensamentos o acompanharam. Queria se aproximar dela. Mas como?
Pensou em demonstrar imediatamente seus dotes dedutivos; chegar ao seu lado e lançar, como uma sentença: você é pianista! 
Não tinha certeza, contudo, se essa opção demonstraria sagacidade, confiança e alguns conhecimentos de teoria musical, ou se somente pareceria um tolo presunçoso. Além disso, e depois, como continuaria a conversa? Se ela respodesse, “sim, sou”, ótimo; mas se dissesse que não, estaria tudo acabado.
Talvez fosse melhor uma aproximação mais clássica: “será que vai chover” ou “o metrô não é mais o mesmo”. Só que falar em chuva em um trem subterrâneo logo lhe pareceu uma idéia infeliz e a crítica ao metrô poderia ser arriscada, afinal ela poderia morar em São Paulo há pouco tempo (ou nem morar) e simplesmente não entender a afirmação.
Enquanto o trem corria e sacolejava, suas idéias vinham sobrepostas, misturadas como cartas de baralho de um jogo sem regras e, tão logo chegavam, suas estratégias eram descartadas, mesmo ciente de que tinha pouquíssimo tempo para tirar um royal street flush do flerte. 
A viagem prosseguia de estação em estação e, sendo impossível saber quando a pianista desceria, com sua pasta marrom recheada de partituras, essa confusão já lhe fazia suar frio e gelava sua barriga.
Ele já imaginava o amor de sua vida indo embora por trás do vidro embaciado do metrô. Se ela estivesse ali de passagem, o que era provável, pois nunca a vira antes, aquela imagem ficaria para sempre pendurada em sua memória: uma fotografia numa moldura de borracha.
E foi então que, no meio daquele delírio, teve uma idéia genial e incrivelmente óbvia: música!
Ora, poderia sentar-se ao lado da pianista e com modéstia perguntar se gostava de música. Sendo evidente a resposta, começaria um papo sem pretensões aparentes sobre Mozart, Beethoven ou, o mais provável, Chopin e Debussy. 
Se a preferência dela fosse música popular, poderia enveradar, tranquilamente, para uma polca de Ernesto Nazareth, um chorinho de Chiquinha Gonzaga, Tom Jobim...
E, mesmo que ela gostasse mais de jazz (o que seria uma pena em sua opinião), ainda teria na manga Duke Ellington, Dave Brubeck, Bill Evans, Thelonious Monk... 
Nesse momento a voz mecanicamente adocicada do metrô anunciou a aproximação de mais uma estação (a segunda ou terceira, desde que partira?). 
O trem parou, abriu as portas, pessoas desceram, outras embarcaram e quando novamente o som do aviso de fechar as portas começava a soar, a pianista se levantou com a velocidade e a leveza de uma bailarina, jogou rapidamente sobre os ombros a alça da pasta marrom e com mais um passo saiu do trem ao mesmo tempo em que porta se fechava.
Ele não teve tempo de se mover. Ficou com seu discurso entalado e ainda se mortificava por ser tão indeciso, quando, vendo-a se afastar, percebeu: a pianista não tinha mãos!





Um comentário: