quarta-feira, 28 de novembro de 2012


E AGORA, JOAQUIM?

Desde que o Ministro Joaquim Barbosa começou a despontar no julgamento do mensalão como o novo herói nacional, desconfiei que o final da história não seria tão apoteótico quanto previam a Veja e Cia. Ltda. E acertei.

Hoje de manhã, na Band News FM, o jornalista Ricardo Boechat, ao ser informado por Mônica Bérgamo que o ex-deputado Roberto Jefferson deve ter sua pena bastante atenuada por haver delatado o esquema e assumido sua culpa nele (embora – e ainda dizem que o crime não compensa – ninguém saiba onde estão os R$4 milhões que ele assumiu ter embolsado), manifestou-se com irritada indignação acerca da quase completa ausência da aplicação de efetiva prisão aos condenados na Ação Penal 470.

E ele tem razão: dos 25 réus no processo, ao menos 9, neste momento, têm direito ao cumprimento da pena em regime semi-aberto ou aberto, pois foram condenados a penas inferiores a oito anos (artigo 33, §2º, alinea “a”, do Código Penal); e outros 3, condenados a 8 anos e uns quebrados, têm grandes chances de aumentar aquele número para 12, haja vista que o próprio STF afirmou que as penas seriam revistas ao final do julgamento para evitar incongruências.

Some-se a isso que no Brasil, na prática, não existem colônias para cumprimento de pena em regime semi-aberto (o que garante aos condenados o direito de cumprir suas penas em regime aberto, pois não poderiam ter sua situação agravada por incompetência do Estado) e conclui-se que, mesmo antes da análise de qualquer recurso, metade dos condenados pelo Mensalão não chegarão nem perto de uma cela! Isso considerando que o STF não vai acatar recursos contra sua própria decisão (embora no Brasil tudo seja possível), porque, se o fizer, a proporção de condenados soltos será maior do que a de presos.

Sem adentrar à questão sobre a adequação do nosso septuagenário Código Penal, o que sempre me chamou a atenção foi a forma como a mídia brasileira, cujos matizes, em geral, variam entre o bege claro e o marrom escuro, conduziu e divulgou o julgamento do mensalão e, em especial, a conduta do Ministro Joaquim Barbosa.

Não há nenhuma dúvida de que o Ministro seja uma pessoa dotada de grande inteligência, um incansável defensor do direito e um luminar da doutrina brasileira; nem tampouco se pode querer macular sua origem, suas conquistas e vitórias pessoais.
No entanto, especifcamente, em relação à sua atuação no julgamento da Ação Penal 470, convenhamos, não era para tanto. 

Primeiramente, o destempero de Sua Exa. não condiz com a posição de um Juiz da mais alta corte do País: ele não pode dizer a outro Ministro, como disse, “julgue como quiser, mas julgue certo”, também não poderia jamais insinuar a imoralidade de seus pares, como se ele, nas palavras do Ministro Marco Aurélio, fosse o único “vestal” e, tampouco, poderia rir, com ar de deboche, do pedido de um advogado, que na defesa de seu cliente tem o direito de pedir o que quiser e ter o seu pedido aceito ou negado com respeito, em qualquer hipótese.

Contudo, não bastassem as vicissitudes e idiossincasias de Sua. Exa., muito relacionadas à sua nítida vaidade, a verdade é que a mídia brasileira criou um novo salvador da Pátria, algo historicamente tão ao gosto da América Latina. Fez do Ministro Barbosa alguém acima do bem e do mal, um Capitão Nascimento de toga, a ponto de circularem pelas redes sociais manifestações de apoio a uma eventual candidatura do Ministro à Presidência da República.

A biografia de Joaquim Barbosa foi capa da Veja, com a manchete “o menino pobre que mudou o Brasil” (alusão pueril ao ex-presidente Lula). Ora, com todo respeito, mas o Ministro não mudou o Brasil. Ele apenas cumpriu sua obrigação constitucional de julgar conforme sua consciência e sua interpretação da prova dos autos, tendo sido escolhido por sorteio para relatar o processo. Nada mais.

Ainda que o atual inimigo número um dos brasileiros, o Ministro Ricardo Lewandowski, tivesse sido o relator, o Ministro Joaquim poderia ter votado como votou e seus pares o poderiam acompanhar, fazendo o relator voto-vencido. O fato de ser o Relator não quer dizer absolutamente nada.

Talvez tenha contribuído, ainda, para lustrar a capa do nosso herói do momento, uma coincidência: ser o Ministro Barbosa o primeiro na “linha de sucessão” à Presidência do STF. 

O que a mídia não relata com a nitidez que deveria é que Joaquim Barbosa não foi eleito Presidente do Supremo porque seja melhor do que os demais Ministros, mas, porque, por uma tradição (e Deus sabe como o Judiciário é chegado numa tradição) o Presidente do Supremo sempre será aquele que (i) tiver mais tempo de casa ao final do mandato do Presidente (seja pelo decurso do prazo de 2 anos, seja em razão da aposentadoria compulsória) e (ii) que ainda não tenha ocupado esse cargo (por exemplo, o Ministro Marco Aurélio tem muito mais tempo de STF do que Joaquim Barbosa, mas já foi presidente e, ao final de seu mandato, foi para o fim da fila).

E agora que a mídia criou esse super-homem brasileiro, o que dizer às pessoas quando a maior parte dos mensaleiros forem tirar férias nas Bahamas? Como pretender que alguém ainda creia no Poder Judiciário, se nem mesmo o todo-poderoso Ministro foi capaz de colocar os corruptos atrás das grades? 

E agora, quem poderá nos defender?

E agora, Joaquim? 






quarta-feira, 14 de novembro de 2012


A Pianista

Assim que pisou no primeiro degrau da escada rolante ouviu o som inconfundível do metrô que se aproximava da estação. 
Como se estivesse diante de um alarme de incêndio, precipitou-se por entre as pessoas paradas, esbarrando nelas, ao mesmo tempo em que pedia desculpas.
Chegou à plataforma e, de um salto, entrou no vagão com um sentimento de vitória. Mal se segurou nas barras internas, soou o aviso de que as portas se fechariam em breve.
Ainda ofegante a viu sentada, com uma grande bolsa de couro marrom e alça única deitada sobre o colo.
Era de uma beleza aterradora: seus cabelos, muito pretos e lisos, caíam perfeitamente para além de seu pescoço como um temporal sem vento e contrastavam com sua pele clara e seus olhos de um azul trasnslúscido. 
No entanto, mais que o encanto desse ar feérico, chamou-lhe a atenção as claves de sol e fá delicadamente tatuadas nos ombros direito e esquerdo, respectivamente: é pianista, deduziu. 
O trem começava a se movimentar e seus pensamentos o acompanharam. Queria se aproximar dela. Mas como?
Pensou em demonstrar imediatamente seus dotes dedutivos; chegar ao seu lado e lançar, como uma sentença: você é pianista! 
Não tinha certeza, contudo, se essa opção demonstraria sagacidade, confiança e alguns conhecimentos de teoria musical, ou se somente pareceria um tolo presunçoso. Além disso, e depois, como continuaria a conversa? Se ela respodesse, “sim, sou”, ótimo; mas se dissesse que não, estaria tudo acabado.
Talvez fosse melhor uma aproximação mais clássica: “será que vai chover” ou “o metrô não é mais o mesmo”. Só que falar em chuva em um trem subterrâneo logo lhe pareceu uma idéia infeliz e a crítica ao metrô poderia ser arriscada, afinal ela poderia morar em São Paulo há pouco tempo (ou nem morar) e simplesmente não entender a afirmação.
Enquanto o trem corria e sacolejava, suas idéias vinham sobrepostas, misturadas como cartas de baralho de um jogo sem regras e, tão logo chegavam, suas estratégias eram descartadas, mesmo ciente de que tinha pouquíssimo tempo para tirar um royal street flush do flerte. 
A viagem prosseguia de estação em estação e, sendo impossível saber quando a pianista desceria, com sua pasta marrom recheada de partituras, essa confusão já lhe fazia suar frio e gelava sua barriga.
Ele já imaginava o amor de sua vida indo embora por trás do vidro embaciado do metrô. Se ela estivesse ali de passagem, o que era provável, pois nunca a vira antes, aquela imagem ficaria para sempre pendurada em sua memória: uma fotografia numa moldura de borracha.
E foi então que, no meio daquele delírio, teve uma idéia genial e incrivelmente óbvia: música!
Ora, poderia sentar-se ao lado da pianista e com modéstia perguntar se gostava de música. Sendo evidente a resposta, começaria um papo sem pretensões aparentes sobre Mozart, Beethoven ou, o mais provável, Chopin e Debussy. 
Se a preferência dela fosse música popular, poderia enveradar, tranquilamente, para uma polca de Ernesto Nazareth, um chorinho de Chiquinha Gonzaga, Tom Jobim...
E, mesmo que ela gostasse mais de jazz (o que seria uma pena em sua opinião), ainda teria na manga Duke Ellington, Dave Brubeck, Bill Evans, Thelonious Monk... 
Nesse momento a voz mecanicamente adocicada do metrô anunciou a aproximação de mais uma estação (a segunda ou terceira, desde que partira?). 
O trem parou, abriu as portas, pessoas desceram, outras embarcaram e quando novamente o som do aviso de fechar as portas começava a soar, a pianista se levantou com a velocidade e a leveza de uma bailarina, jogou rapidamente sobre os ombros a alça da pasta marrom e com mais um passo saiu do trem ao mesmo tempo em que porta se fechava.
Ele não teve tempo de se mover. Ficou com seu discurso entalado e ainda se mortificava por ser tão indeciso, quando, vendo-a se afastar, percebeu: a pianista não tinha mãos!